terça-feira, 6 de novembro de 2007

S. Domingos e S. Pedro Mártir

5.1. a) [Imagens de] S. Domingos e S. Pedro Mártir [no Arco triunfal da Igreja Conventual]

Conhece-se o contrato feito por D. Francisco de Vasconcelos, 1º conde de Figueiró e irmão de sangue de Fr. João, relativo à encomenda a este escultor das imagens de S. Domingos de Gusmão e de S. Pedro Mártir para o arco triunfal da igreja do convento de S. Domingos de Benfica[fig. 12A], dos então arredores de Lisboa[1]. O Capítulo Geral da Ordem dos Irmãos Pregadores reunido em 1254 em Budapeste tinha determinado que na Capela-mor de todas as igrejas conventuais da Ordem se colocassem as imagens de S. Domingos de Gusmão e de S. Pedro Mártir[2]. É o que acontece entre nós, por exemplo, nos vitrais que ornam a capela-mor da igreja conventual do mosteiro de Nossa Senhora da Vitória na Batalha[3].
Estas imagens foram colocadas nos respectivos nichos sob a orientação do entalhador Jerónimo Correia, na presença de Fr. João de Vasconcelos[4].
Fr. Manuel da Silva refere o facto de estas estátuas terem “mais de grossura que os nichos” para onde eram destinadas “meio palmo”[5]. Isto acontecia à largura, já que as medidas que constam do contrato eram só as da altura - "de a dos baras de alto cada una". De facto, o nicho onde se encontra a estátua de S. Pedro Mártir[fig. 14] está ligeiramente cortado à largura ao nível do cotovelo esquerdo. A estátua de S. Domingos[fig. 13] entra resvés à largura, ultrapassando a parte do antebraço e pulso direitos, que ficam de fora, a largura do respectivo nicho[6].
Os atributos das imagens desapareceram[7], mas as atitudes descritas correspondem, assim como o golpe de machada no alto da cabeça de S. Pedro Mártir[8]. Por outro lado, a comparação com o celebérrimo S. Bruno da Cartuxa de Miraflores, perto de Burgos, confirma, a nosso ver, a autoria destas estátuas.
Em 1635 encontra-se Juan Martínez Montañés em Madrid, chamado à corte para modelar a cabeça do Rei (Filipe IV de Castela e III de Aragão e de Portugal), onde se queda até Fevereiro de 1636[9]. Ora Manuel Pereira recebeu a encomenda das imagens para o retábulo-mor de S. Domingos de Benfica em Maio de 1636, pelo que ousamos aventar a hipótese de o nosso escultor ter recebido influência de Montañés - o que explicaria as semelhanças formais que a nossos olhos se podem encontrar entre o S. Domingos penitente (1606-07) do Museu de Belas Artes de Sevilha (procedente do mosteiro de Portacœli)[10] e o S. Francisco de Assis (1621-26?) do convento de Santa Clara da mesma cidade andaluza[11], de Montañés, e as referidas imagens do cenóbio de Benfica, em especial do S. Domingos, de Pereira. As semelhanças entre as citadas imagens de Montañés e o S. Domingos de Pereira situam-se especialmente no rosto, "de admirável transparência espiritual"[12]. Sabemos que a produção de Manuel Pereira é muito diferente, a ponto de só acreditarmos que certas obras são dele mediante documentação insofismável. Já Cruz Cerqueira tinha chamado a atenção para os elementos sevilhanos que encontrava nas esculturas de Benfica.179A
A autoria pereirina das imagens atrás analisadas foi posta em dúvida antes do achado documental de Mercedes Agulló y Cobo, publicada em 1978[13]. Sem termos tido conhecimento desta documentação, e baseando-nos numa leitura mais atenta dos textos de Fr. António da Encarnação e de Fr. Lucas de Santa Catarina[14], e nas características iconográficas e estilísticas das quatro grandes imagens de vulto do altar-mor (além das de S. Domingos e S. Pedro Mártir no arco triunfal, as de S. Francisco e S. Domingos colocadas nos intercolúnios e agora apeadas), já em 1979 defendíamos a autoria de Manuel Pereira para estas imagens[15]. O achado documental de Mercedes Agulló foi referido entre nós e apenas de passagem por Carlos Moura em 1989[16]; contrariamente ao que aconteceu em Espanha com as notícias elaboradas por Martín González, em 1983[17] e em 1988[18], e Morales y Marín em 1991[19].

Extracto de: Fr. António-José de ALMEIDA O.P. - «Imagines Sacrae» no Convento de São Domingos de Benfica. Lisboa: [Texto policopiado], 1999. 2 vols.

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[1] Mercedes AGULLÓ y COBO, "Manuel Pereira. Aportación documental", in Boletin del Seminario de Estudios de Arte y Arqueología, Valladolid, tomo XLIV (1978), p. 269 - vd. Apêndice, Doc. 1.
[2] Monumenta Ordinis Praedicatorum Historica, III, p. 70.
[3] S. Domingos atrás de D. Manuel e S. Pedro atrás de D. Maria, atitude semelhante à observada no portal axial do mosteiro de Sta. Maria de Belém (vulgo Jerónimos) em Lisboa - como já salientámos na nossa comunicação no Simpósio de Salónica da Rota das influências monásticas, em Outubro de 1993 - Fr. António José de ALMEIDA op., “Iconographie Monastique au Portugal: Quelques Exemples Significatifs (Batalha, Belém, Benfica)”, in NATIONAL Helenic Research Foundation, Institute for Byzantine Research, Trends in Orthodox Monasticism, 9th-20th centuries, Atenas, Cultural Relations Division - Ministry of Culture, 1996 (col. Byzantium Today 1), pp. 303-307. O mesmo se pode dizer do quadro anónimo quatrocentista do Museu do Prado, Inv.-Nº 1260: S. Domingos encontra-se atrás de Isabel de Castela, e S. Tomás de Aquino atrás de Fernando de Aragão - Gregor Martin LECHNER, "Iconographia Thomasiana. Thomas von Aquin und seine Darstellungen in der bildenden Kunst", in Willehad Paul ECKERT op (dir.), Thomas von Aquino: Interpretation und Rezeption. Studien und Texte, Mogúncia, Matthias-Grünewald, [1974], Est. 2, fig. 2.
[4] M. da SILVA, Breve Sumario..., ff. 7v. -8r. (Apêndice, Doc. 3, p. 20). Fr. Lucas de SANTA CATARINA, Quarta Parte da História de S. Domingos particular do Reino e Conquistas de Portugal (1ª ed. Lisboa, 1767), cap. XXI, (Fr. Luís de SOUSA, História de S. Domingos, Porto, Lello, 1977, vol. II, p. 557) diz somente que as medidas das estátuas eram superiores às dos nichos.
[5] M. SILVA, Breve Sumario ..., f. 7 vº (vd Apêndice, vol. II, Doc. 3, p. 22).
[6] Esta imagens são descritas por Fr. António da ENCARNAÇÃO, “Addição…de Bemfica”, in Hist.S. Dom., II Parte, L. II (vol. I, p. 890).
[7] O cachorro que hoje se encontra aos pés da estátua setecentista de S. Domingos, no nicho do lado do evangelho, provém da outra estátua do mesmo santo que estava no intercolúnio do lado da epístola e foi apeada no último restauro [fig. 7].
[8] Vd. o episódio do martírio do Santo em Fr. António ROSADO, Sermão feito em Saõ Domingos do Porto na festa de São Pedro Martir, s.l., Off. Nicolao Carvalho, 1620.
[9] J.J. MARTÍN GONZÁLEZ, Escultura Barroca …, p. 152.
[10] José HERNÁNDEZ DÍAZ, Juan Martínez Montañés (1568-1649), Sevilha, Ed. Guadalquivir, 1987, figs. 84 (p. 112) e 85 (p. 113).
[11] Ibid., fig. 242 (p. 215).
[12] No dizer de J.J MARTÍN GONZÁLEZ, Escultura Barroca …, pp.147-148, a propósito da cabeça do S. Francisco do Convento de Santa Clara.
179A Cruz CERQUEIRA, "As imagens e os painéis de S, Domingos de Benfica. Notas para a história artística de Manuel Pereira e Vicente Carducho", in Olissipo, vol. IX, ano de 1946, nº 35 (Julho), pp. 136-143, e nº 36 (Outubro), pp. 203-223. – citado por J.J. MARTÍN GONZÁLEZ, Escultura Barroca …, p. 258.
[13] Vd. nota 168.
[14] Só este ano tivemos conhecimento do texto de Fr. Manuel da Silva, que reproduzimos em Apêndice, Doc. 3.
[15] A. J. ALMEIDA, A Igreja do Convento …, pp. 17-19. Esta nossa opinião foi publicada, sem referência, por M.B. Gonçalves PEDRO, Igreja de Nossa Senhora do Rosário, Templo da Força Aérea em Lisboa. Apontamentos Monográficos, [Lisboa], Força Aérea Portuguesa, [1981], pp. 15-16.
[16] Carlos MOURA, "PEREIRA, Manuel (1588-1683)", in José Fernandes PEREIRA (dir.), Dicionário da Arte Barroca em Portugal, Lisboa, Presença, 1989, pp. 351-352.
[17] J.J. MARTÍN GONZÁLEZ, Escultura Barroca …, p. 258
[18] Juan José MARTÍN GONZÁLEZ, "La Escultura del siglo XVII en las demás escuelas españolas", in J.H. HERNÁNDEZ & J.J MARTÍN & J. H. PITA, La Escultura y la Arquitectura Españolas del siglo XVII, Madrid, Espasa-Calpe, 1988 (Summa Artis - Historia General del Arte, vol. XXVI), pp. 245-426; Id., "Manuel Pereira", in Ibid., pp. 371-382; Id., “Bibl. (Escola de Madrid)”, in Ibid., pp. 424-425, esp. p. 375.
[19] José Luis MORALES y MARÍN, "Barroco", in J.-A. FRANÇA & J.L. MORALES & W. RINCÓN, Arte Portugués, Madrid, Espasa-Calpe, 1991 (Summa Artis - Historia General del Arte, vol XXX), pp. 387-398 + Bibl. pp. 660-664, Manuel Pereira - pp. 328.330-332, esp. p. 328.

Manuel Pereira

5.1. As imagens de Manuel Pereira (*1588 - †1683) [na Igreja Conventual]

As estátuas do arco triunfal e dos altares do transepto vieram, segundo Fr. António da Encarnação, "do Reino de Castella"[1], feitas "por um insigne official; e por tal chamado áquella Corte, Portuguez, natural do Porto; merece eterna lembrança, por unico, e honra dos engenhos Portuguezes."[2]
Manuel Pereira é natural do Porto, da freguesia de S. Nicolau, onde nasceu em 1588, tendo sido educado, portanto, ainda dentro do gosto maneirista. A sua carreira, porém, foi feita em Espanha, de modo especial na corte de Madrid. A espanholização de Pereira é favorecida pela presença na vila de Madrid de correntes das escolas andaluza e castelhana[3].
Em 1624, encontramo-lo a trabalhar em Alcalá de Henares, onde esculpiu as quatro estátuas em pedra da frontaria da igreja da Companhia de Jesus: S. Pedro (hoje sem cabeça, e na qual está gravada a data de 1624) e S. Paulo, Sto. Inácio de Loiola e S. Francisco Xavier. Também nesta cidade lhe é atribuída a feitura (por volta de 1626) da estátua, também em pedra, de S. Bernardo da fachada da igreja do convento das Bernardas. "Era já um artista feito, adulto, sem vestígios daquilo que então se fazia em Portugal"[4].
É da sua autoria a celebérrima estátua em madeira de S. Bruno (anterior a 1635) da Cartuxa de Miraflores (Burgos)[5].
A sua obra principal encontra-se em Madrid[6], onde lhe é encomendada em 1631 a estátua lígnea de Sto. António para o retábulo do altar-mor da igreja de Santo António dos Portugueses (hoje com bastantes repintes)[7]. Também é da sua autoria a imagem pétrea da fachada da mesma igreja.
Na notícia que dele dá, Palomino chama-lhe “insigne escultor”[8]. Foi nomeado Familiar do Santo Ofício, título de que muito se ufana, e não voltou a casar após ter enviuvado em 1639. Morreu em Madrid em 29 de Janeiro de 1683, com a avançada idade de 95 anos.
Afirma Carlos Moura que são as estátuas de São Bruno, a já mensionada da Cartuxa de Miraflores (Burgos) e outra mais tardia que pertenceu à fachada da Hospedaria da Cartuxa do Paular em Madrid e que hoje se encontra no Museu da Academia de S. Fernando, que marcam a obra do escultor português “numa vertente barroca, ausente de qualquer dramatismo exacerbado.”[9] Pensamos que estas afirmações se podem aplicar também às estátuas de S. Domingos de Benfica.
Lembremos a propósito que, como diz Martín González, "Se a pintura da época oferece a crueza do naturalismo caravaggiesco, a verdade é que se conta também com o aristocratismo da escola de Bolonha.[10]"

Extracto de: Fr. António-José de ALMEIDA O.P. - «Imagines Sacrae» no Convento de São Domingos de Benfica. Lisboa: [Texto policopiado], 1999. 2 vols.

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[1] “De Madrid”, precisa Manuel da SILVA, Breve Sumario..., f. 7v. (Appêndice, Doc. 3, p. 20).
[2] A. ENCARNAÇÃO, "Addição … de Bemfica", in Hist. S. Dom., II Parte, L. II (vol. I, p. 889).
[3] J. J. MARTÍN GONZÁLEZ, Escultura Barroca en España, 1600-1770 [1ª ed. 1983], Madrid, Cátedra, [1991](2ªed.), p. 38.
[4] Pedro DIAS, A escultura maneirista portuguesa. Subsídios para uma síntese, Coimbra, Minerva, 1995, p. 31.
[5] Vd. Maria Elena GÓMEZ-MORENO, Escultura del siglo XVII, (col. Ars Hispaniae - Historia Universal del Arte Hispánico, vol. XVI), Madrid, Plus-Ultra, 1963, p. 107, fig. 91.
[6] Cf. Ibid., p. 109 e segs.
[7] Vd. Ibid., p. 107, fig. 89.
[8] A. PALOMINO, Vidas, pp. 206-207.
[9] Carlos MOURA, “Uma poética da refulgência: a escultura e a talha dourada”, in História da Arte em Portugal, vol. 8: O limiar do barroco, Lisboa, Alfa, [1987], p. 93.
[10] J.J. MARTÍN GONZÁLEZ, Escultura Barroca …, p. 143.

Fr. João de Vasconcelos, O.P.

1.

A figura de Fr. João de Vasconcelos [O.P.]:

Frei João de Vasconcelos[1], no século D. Álvaro Mendes de Vasconcelos, nasceu com toda a certeza em Évora, entre fins de 1588 e princípios de 1590. Era filho segundo de D. Manuel de Vasconcelos, presidente do Senado da Câmara de Lisboa e regedor das justiças, e de D. Luísa de Vilhena de Mendonça, sendo o primogénito D. Francisco de Vasconcelos, que veio a ser o primeiro conde de Figueiró.
Passou a sua infância numa quinta em Marvila e fez os seus primeiros estudos no convento de S. Bento de Xabregas. Foi seu mestre em humanidades o Venerável Padre António da Conceição (vulgo Beato António) da Congregação de S. João Evangelista[2], que residia nesse tempo no convento de S. Bento dos Lóios. Entrou na Universidade de Coimbra, sendo “porcionista” (i.e., pensionista) no colégio de S. Pedro.
Abandonando os estudos universitários, fez a sua entrada na Ordem dos Pregadores, contra a vontade da família, no convento de Santa Maria da Vitória, na Batalha, e completou o noviciado no convento de S. Paulo, em Almada, onde professou solenemente em 11 de Maio de 1608. Fez os seus estudos institucionais no convento de S. Domingos de Lisboa, ao Rossio, e no colégio de São Tomás de Coimbra. Foi professor de Filosofia e Teologia em Lisboa e na Universidade de Évora. Leccionava nesta última cidade quando foi eleito em 1623 prior do convento (i.e., superior da comunidade religiosa) do mosteiro de São Domingos de Benfica[3], não chegava a 35 anos de idade, ficando, terminado o priorado em 1628, como vigário in capite do mesmo cenóbio, como era normal na época[4], até 1631.

2.

A primeira pedra da nova igreja conventual de S. Domingos de Benfica foi lançada em 1624, sendo a primeira missa celebrada na mesma igreja em 1632.
Em Novembro desse ano de 1632 passa Fr. João de Vasconcelos a ocupar o lugar cativo dos dominicanos no conselho geral do Santo Ofício (a mais alta instância desta instituição), e é nesse mesmo ano nomeado Pregador, em Madrid, d'el-rei Filipe IV de Castela e III de Aragão e Portugal.
Foi ainda eleito prior provincial da Província dominicana de Portugal em 1637, ano em que foi enviado como Inquisidor apostólico (embaixador extraordinário) à corte de Madrid, onde o seu irmão D. Francisco de Vasconcelos era Mordomo-Mor da Rainha, o qual fez o contrato com o escultor Manuel Pereira para a feitura das imagens de S. Domingos e S. Pedro Mártir para a igreja do convento de Benfica, como adiante veremos.
Tendo terminado em 1641 o mandato de prior provincial, é Fr. João de Vasconcelos eleito novamente prior do convento de Benfica. Em 1644 termina o priorado e permanece à frente da comunidade de Benfica como vigário in capite. Nesse ano firma contrato em nome dos religiosos do convento com D. Francisco de Castro para a erecção da capela de Corpus Christi[5].
Em 1646 deixa de ser vigário in capite do cenóbio de Benfica, e nesse mesmo ano é feito membro do conselho de Estado d'el-rei D. João IV e nomeado Reformador da Universidade de Coimbra[6].
Vemos como por longo período ele orienta as obras de reedificação e decoração do convento de Benfica. Diz-nos o seu biógrafo, Fr. Andrés Ferrer de Valdecebro, que foi «impelido (...) de santo zelo del Divino culto, y servicio del Señor»[7] que o Venerável Padre Mestre decidiu reconstruir a igreja do Convento. Esta era ao tempo, no dizer de Frei Luís de Sousa[8] «obra feita a pedaços, e com defeitos de architectura»[9]. Era no fundo em nome do Decoro que o Venerável Fr. João de Vasconcelos actuava e assentava a sua ideia de renovação: o que é digno da Casa de Deus, o que convém à Majestade Divina. Assim afirma Fr. Lucas de Santa Catarina: "Ameaçava ruina a Igreja, examinava-o o Prior, não podia dissimular a mágoa de ver aquellas santas paredes / em que o mesmo Deos se hospedava) não só pouco polidas, mas ainda velhas, não só velhas, mas arruinadas, e lamentava com piedoso zelo a desgraça de que, padecendo indecencia, fosse precisa."[10] E mais adiante afirma ele do prior Fr. João de Vasconcelos: "O seu grande, o seu continuo desvelo era a decencia no culto Divino [negritos nossos]."[11] Deverá ter tido Fr. João conhecimento das Instructiones Fabricae et supellectilis ecclesiasticae (1577) de S. Carlos Borromeu[12], mas, mesmo que não tivesse, banhava-se nas mesmas águas que o santo arcebispo de Milão, como também é o caso do padre capuchinho Fr. Antonio da Pordone (prof. 1591 - †1628), frade “fabbriciere”[13]. Fr. Agostino Colli ofm cap resume assim as intenções programáticas destes dois eclesiásticos a respeito dos edifícios religiosos: “a preocupação por uma arquitectura decorosa e funcional”[14] - “qualquer elemento estrutural ou decorativo concorre para o decoro da igreja e é funcional para a vida litúrgica ou para as exigências da vida quotidiana”[15]. O que convém à Majestade Divina nunca pode ser inferior ao que convém à Majestade terrena - daí, estamos em crer, se pode explicar que Fr. João de Vasconcelos, terminada que foi a reedificação, tenha procurado na corte de Madrid os artistas aí mais cotados, e que já tinham trabalhado no retábulo-mor da igreja madrilena de Santo António dos Portugueses, um edifício de planta poligonal[16], para estes executarem as imagines sacrae (pinturas e esculturas) do cenóbio domínico de Benfica[17]. Entre elas encontram-se as estátuas de Manuel Pereira e as telas de Vicente Carducho. Julgamos que as estátuas são posteriores ao último remate da igreja, devido ao contrato feito para duas delas conforme acima referimos e adiante se indica.
Fr. João de Vasconcelos faleceu no convento do Sacramento de Alcântara em 29 de Janeiro de 1652, sendo sepultado no chão, no meio do antecoro do convento de S. Domingos de Lisboa, como Fr. Luís de Sousa o foi no do de Benfica. O conde de Figueiró, seu sobrinho, D. Pedro Luís de Lencastre (†1658), mandou fazer-lhe um túmulo na parte de trás do coro, a sala da portaria, do convento de Lisboa[18], em frente do de Fr. Luís de Granada, no qual está escrito um elucidativo epitáfio, que diz: Magnus Theologus Frater Joannes de Vasconcello, ex Praedicatorum familia, clarissimus sanguine, moribus nitidior, Regis, ac supremi Inquisitionis Senatus á Consiliis, Prioris Provincialis munere, Regii Concionatoris laurea, Pontificia recusata dignitate, virtibus cumulatus, ac meritis, in Crucifixi amplexu, magna Christianae pietatis opinione, pauperum dolore, omniumque desiderio, Ulyssipone maritur Kal Feb. ann. sal. 1652. aetatis suae 62.”[19]. Conserva-se na colecção do Marquês de Abrantes um retrato pintado deste ilustre personagem[fig. 1][20], o mesmo acontecendo numa gravura existente no início da sua biografia já citada[fig. 2][21].

Extracto de: Fr. António-José de ALMEIDA O.P. - «Imagines Sacrae» no Convento de São Domingos de Benfica. Lisboa: [Texto policopiado], 1999. 2 vols. Tese de Mestrado em História da Arte, orientada inicialmente pelo Prof. Doutor Artur Nobre de Gusmão e depois pelo Porf. Doutor Vítor Serrão, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. I vol., cap. I, 3. [http://dited.bn.pt/30355/1346/1768.pdf (Índice, Introdução e Bibliografia)]

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[1] Os dados biográficos são colhidos da sua biografia: Fr. Andrés FERRER de VALDECEBRO O.P., Historia de la Vida del V. P. M. F. Iuan de Vasconcelos, Madrid, por D. Maria Rey, 1668 (a seguir: A. FERRER, Historia dela Vida …); da crónica dos dominicanos em Portugal, Quarta Parte da Historia de S. Domingos, particular do Reyno, e Conquistas de Portugal, por Fr. Lucas de SANTA CATARINA, Lisboa, na of. de António Rodrigues Galhardo, 1767, livro I, caps. 15-23 (ed. utilizada: Fr. Luís de Sousa, História de S. Domingos, Porto Lello & Irmão, 1977, Vol. II, pp. 526-573); o artigo de Cruz CERQUEIRA no jornal A Voz de 30 de Novembro de 1933, p. 3: "Fr. João de Vasconcelos, uma figura ilustre e esquecida"; e Teresa Leonor M. VALE, O Convento de S. Domingos de Benfica. D. João de Castro e o Instituto Militar dos Pupilos do Exército, [Lisboa], I.M.P.E., 1996, pp. 33-41.
[2] O Pe. António da Conceição foi retatado numa gravura executada por Lucas Vorstermans II (*1624 - †1667) quando da sua estada em Portugal entre 1645 e1648 – José Alberto Gomes MACHADO, “Lucas Vorstermans em Portugal. Uma via de introdução da imagética barroca?”, in Pedro DIAS (coord.), IV Simpósio luso-espanhol de História da Arte: Portugal e Espanha entre a Europa e Além-Mar, Coimbra, Instituto de História da Arte – Universidade de Coimbra, 1998, pp. 145 e 150.
[3] A primeira casa da Reforma do século XIV dos Frades dominicanos em Portugal e toda a Península Ibérica, como atrás dissemos.
[4] "Confirmamus Capituli ordinationem alias factam et per nos iterum confirmatam, quod priores conuentuales completo triennio sui prioratus subsequenter et ilico perseuerent uicarijs eorum conuentuum in capite & in membris quousque praesentes uicarios instituimus ex nunc ubi fuerint priores, quousque domus et conuentus illac habeat priorem confirmatum et praesentem" - das Ordenações do R.mo Fr. Vicente Justiniano, Mestre Geral da Ordem dos Frades Pregadores, para a Província dominicana de Portugal, datadas de 12 de Outubro de 1566, in CARTÓRIO Dominicano Português - Século XVI, Fasc. 10: Capítulos Provinciais da Ordem de S. Domingos em Portugal, 1567-1591, Porto, Arquivo Histórico Dominicano Português, 1977, p. 53, nº 510.
"Declaramus priores, completo suo officio, etsi uicarij permaneant conuentui, non tamen electioni noui prioris esse uicarios, sed hoc esse supprioris munus" - Actas do Capítulo Provincial da Província O.P. de Portugal tido em Lisboa e datadas de 14 de Setembro do 1567, declaração esta reiterada no Capítulo seguinte de Santarém (Actas datadas de 10 de Novembro de 1571), in Ibid., p. 8, nº 21 e p. 12, nº58.
No Capítulo subsequente de Lisboa (Actas datadas de 2 de Maio de 1574), esta declaração teve a seguinte formulação:. "Declaramus, iuxta ordinationem Capituli Generalis, quod solum prior qui compleuit tiennium manet uicarius in capite, non tamen uicarius electionis noui prioris, quod manus pertinet ad suppriorem", in Ibid., p. 18, nº 128; porém, no Capítulo seguinte realizado no Porto (Actas datadas de 14 de Maio de 1576), a mesma declaração foi reformulada como segue: "Declaramus quod prior omnis cuius officium cessauit quacunque de causa, modo non sit propter defectus absolutus, etiam si non compleuerit tiennium, maneat uicarius in capite, non tamen electionis, quia munus hoc pertinet ad suppriorem. Quod si necesse est hoc ipsum de nouo ordinamus, declarantes, quod uicarius uotum habet in electione prioris", in Ibid., p. 23, nº 183; formulação esta reiterada nos Capítulos subsequentes de Benfica (Actas datadas de 19 de Abril de 1578) e da Batalha (Actas datadas de 20 de Setembro de 1579), in Ibid., p. 27, nº 235 e p. 31, nº 286.
[5] Como veremos a seguir, pp. 29-30*
[6] Chegou até nós um retrato a óleo, em cuja inscrição se refere este seu cargo. Vd. no fim deste sub-capítulo, p. 25* (nota 57) e fig. 3.
[7] A. FERRER, Historia dela Vida..., f. 41r.
[8] In Historia de S. Domingos particular do Reino e Conquistas de Portugal. (História de S. Domingos por Fr. Luís de Sousa, Porto: Lello & Irmão - Editores 1977, 2 vols.), a seguir: Hist. S. Dom.. As citações serão feitas, entre parêntesis curvos, da ed. de 1977.
[9] Fr. Luís de SOUSA O.P., Hist. S. Dom., II Parte, cap. III (vol. I, p.824).
[10] Fr. Lucas de SANTA CATARINA O.P., IV Parte da História de S. Domingos, livro I, cap. 15 (vol. II, p. 531).
[11] Ibid., cap. 20 (p. 552).
[12] Rapidamente se espalharam por Espanha exemplares das suas obras. É o caso da livraria do patriarca Ribera, do seu colégio-seminário do Corpus Christi de Valência, onde se encontra, entre as obras impressas do século XVI, as Instructiones Fabricae. - Francisco MARTÍN HERNANDEZ, “Influencia en la Península Ibérica”, in San Carlo e il suo tempo. Atti del Convegno Internazionale nel IV centenario della morte (Milano, 21-26 maggio 1984), Roma, Edizioni di Storia e Letteratura, 1986, vol. I, p. 481. Necessário seria pesquisar também nas bibliotecas portuguesas exemplares desta época. As livrarias dos conventos dominicanos de Lisboa desapareceram, como já atrás dissemos.
[13] Agostino COLLI, “Un Trattato di Architettura Cappuccina e le «Instructiones Fabricae» di San Carlo”, in Ibid., vol. I, pp. 663-688.
[14] Ibid., p. 682.
[15] Ibid., p. 680.
[16] Sobre Santo António dos Portugueses em Madrid, cf. Antonio BONET CORREA, Iglesias Madrileñas del Siglo XVII, Madrid, Instituto «Diego Velazquez», 1984, p. 29.
[17] Fr. Lucas de Santa Catarina compara Fr. João de Vasconcelos a Salomão e cita a propósito dele o versículo 8 do Salmo 25, na versão da Vulgata: "Domine dilexi decorem domus tuae: Senhor, eu amei a fermusura de vossa casa." - Fr. Lucas de SANTA CATARINA, Hist. S. Dom., Parte IV, livro I, cap. 25 (vol. II, p. 531). Sabemos que a ideologia salomónica esteve na base da construção do Mosteiro do Escorial por Filipe II de Espanha - Cf. C. OSTEN SACKEN, El Escorial, cap. 6: "El Escorial como Nuevo Templum Salomonis", pp. 119-136.
[18] Na quadra hoje nas traseiras da Igreja de S. Domingos ao Rossio, quem sai para o Largo de Martim Moniz - o chamado antecoro.
[19] "Vem a dizer em o nosso vulgar: O grande Theologo Frei João de Vasconcellos, da familia dos Prégadores, clarissimo em sangue, muito mais em virtude, do Conselho d'el Rei, e supremo Tribunal da Inquisição, Prior Provincial, e Pregador d'el Rei, recusada a dignidade Episcopal, cheio de virtudes, e merecimentos, abraçado com hum Crucifixo, (com grande opinião de piedade Christãa, magoa dos necessitados, e saudade de todos) morre em Lisboa. Em as Calendas de Fevereiro, anno da salvação 1652, de idade de 62." - Fr. Lucas de SANTA CATARINA O.P., Hist. S. Dom., Parte IV, L. I, cap. 23 (vol. II, p. 572) Cf. tb. o artigo de Vítor SERRÃO no qual se referem os monumentos fúnebres: “Marcos de Magalhães, Arquitecto e Entalhador do Ciclo da Restauração (1647-1664)”, in Boletim Cultural [da] Assembleia Distrital de Lisboa, nº 89, Tomo I, 1983, pp. 217-329.
[20] ACADEMIA Nacional de Belas Artes, cat. Personagens Portuguesas do século XVII. Exposição de Arte e Iconografia (preâmbulo de Reynaldo dos SANTOS), Lisboa, Palácio da Independência, 1942, nº 41, p. [20] (texto) e estampa. Esta fotografia foi reproduzida na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 34, p. 292.
[21] A. FERRER, Historia dela Vida..., f. [Xv.].
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Traducción en castellano: Fray António-José de ALMEIDA O.P. - “El escultor Manuel Pereira y un milagro de Fray João de Vasconcelos, O.P., predicador de Felipe IV”. In rev. Reales Sitios. Madrid: Patrimonio Nacional. ISSN 0486-0993. Año XL (2003), nº 157 (3er. trimestre), pp. 20- 31.