terça-feira, 6 de novembro de 2007

Fr. João de Vasconcelos, O.P.

1.

A figura de Fr. João de Vasconcelos [O.P.]:

Frei João de Vasconcelos[1], no século D. Álvaro Mendes de Vasconcelos, nasceu com toda a certeza em Évora, entre fins de 1588 e princípios de 1590. Era filho segundo de D. Manuel de Vasconcelos, presidente do Senado da Câmara de Lisboa e regedor das justiças, e de D. Luísa de Vilhena de Mendonça, sendo o primogénito D. Francisco de Vasconcelos, que veio a ser o primeiro conde de Figueiró.
Passou a sua infância numa quinta em Marvila e fez os seus primeiros estudos no convento de S. Bento de Xabregas. Foi seu mestre em humanidades o Venerável Padre António da Conceição (vulgo Beato António) da Congregação de S. João Evangelista[2], que residia nesse tempo no convento de S. Bento dos Lóios. Entrou na Universidade de Coimbra, sendo “porcionista” (i.e., pensionista) no colégio de S. Pedro.
Abandonando os estudos universitários, fez a sua entrada na Ordem dos Pregadores, contra a vontade da família, no convento de Santa Maria da Vitória, na Batalha, e completou o noviciado no convento de S. Paulo, em Almada, onde professou solenemente em 11 de Maio de 1608. Fez os seus estudos institucionais no convento de S. Domingos de Lisboa, ao Rossio, e no colégio de São Tomás de Coimbra. Foi professor de Filosofia e Teologia em Lisboa e na Universidade de Évora. Leccionava nesta última cidade quando foi eleito em 1623 prior do convento (i.e., superior da comunidade religiosa) do mosteiro de São Domingos de Benfica[3], não chegava a 35 anos de idade, ficando, terminado o priorado em 1628, como vigário in capite do mesmo cenóbio, como era normal na época[4], até 1631.

2.

A primeira pedra da nova igreja conventual de S. Domingos de Benfica foi lançada em 1624, sendo a primeira missa celebrada na mesma igreja em 1632.
Em Novembro desse ano de 1632 passa Fr. João de Vasconcelos a ocupar o lugar cativo dos dominicanos no conselho geral do Santo Ofício (a mais alta instância desta instituição), e é nesse mesmo ano nomeado Pregador, em Madrid, d'el-rei Filipe IV de Castela e III de Aragão e Portugal.
Foi ainda eleito prior provincial da Província dominicana de Portugal em 1637, ano em que foi enviado como Inquisidor apostólico (embaixador extraordinário) à corte de Madrid, onde o seu irmão D. Francisco de Vasconcelos era Mordomo-Mor da Rainha, o qual fez o contrato com o escultor Manuel Pereira para a feitura das imagens de S. Domingos e S. Pedro Mártir para a igreja do convento de Benfica, como adiante veremos.
Tendo terminado em 1641 o mandato de prior provincial, é Fr. João de Vasconcelos eleito novamente prior do convento de Benfica. Em 1644 termina o priorado e permanece à frente da comunidade de Benfica como vigário in capite. Nesse ano firma contrato em nome dos religiosos do convento com D. Francisco de Castro para a erecção da capela de Corpus Christi[5].
Em 1646 deixa de ser vigário in capite do cenóbio de Benfica, e nesse mesmo ano é feito membro do conselho de Estado d'el-rei D. João IV e nomeado Reformador da Universidade de Coimbra[6].
Vemos como por longo período ele orienta as obras de reedificação e decoração do convento de Benfica. Diz-nos o seu biógrafo, Fr. Andrés Ferrer de Valdecebro, que foi «impelido (...) de santo zelo del Divino culto, y servicio del Señor»[7] que o Venerável Padre Mestre decidiu reconstruir a igreja do Convento. Esta era ao tempo, no dizer de Frei Luís de Sousa[8] «obra feita a pedaços, e com defeitos de architectura»[9]. Era no fundo em nome do Decoro que o Venerável Fr. João de Vasconcelos actuava e assentava a sua ideia de renovação: o que é digno da Casa de Deus, o que convém à Majestade Divina. Assim afirma Fr. Lucas de Santa Catarina: "Ameaçava ruina a Igreja, examinava-o o Prior, não podia dissimular a mágoa de ver aquellas santas paredes / em que o mesmo Deos se hospedava) não só pouco polidas, mas ainda velhas, não só velhas, mas arruinadas, e lamentava com piedoso zelo a desgraça de que, padecendo indecencia, fosse precisa."[10] E mais adiante afirma ele do prior Fr. João de Vasconcelos: "O seu grande, o seu continuo desvelo era a decencia no culto Divino [negritos nossos]."[11] Deverá ter tido Fr. João conhecimento das Instructiones Fabricae et supellectilis ecclesiasticae (1577) de S. Carlos Borromeu[12], mas, mesmo que não tivesse, banhava-se nas mesmas águas que o santo arcebispo de Milão, como também é o caso do padre capuchinho Fr. Antonio da Pordone (prof. 1591 - †1628), frade “fabbriciere”[13]. Fr. Agostino Colli ofm cap resume assim as intenções programáticas destes dois eclesiásticos a respeito dos edifícios religiosos: “a preocupação por uma arquitectura decorosa e funcional”[14] - “qualquer elemento estrutural ou decorativo concorre para o decoro da igreja e é funcional para a vida litúrgica ou para as exigências da vida quotidiana”[15]. O que convém à Majestade Divina nunca pode ser inferior ao que convém à Majestade terrena - daí, estamos em crer, se pode explicar que Fr. João de Vasconcelos, terminada que foi a reedificação, tenha procurado na corte de Madrid os artistas aí mais cotados, e que já tinham trabalhado no retábulo-mor da igreja madrilena de Santo António dos Portugueses, um edifício de planta poligonal[16], para estes executarem as imagines sacrae (pinturas e esculturas) do cenóbio domínico de Benfica[17]. Entre elas encontram-se as estátuas de Manuel Pereira e as telas de Vicente Carducho. Julgamos que as estátuas são posteriores ao último remate da igreja, devido ao contrato feito para duas delas conforme acima referimos e adiante se indica.
Fr. João de Vasconcelos faleceu no convento do Sacramento de Alcântara em 29 de Janeiro de 1652, sendo sepultado no chão, no meio do antecoro do convento de S. Domingos de Lisboa, como Fr. Luís de Sousa o foi no do de Benfica. O conde de Figueiró, seu sobrinho, D. Pedro Luís de Lencastre (†1658), mandou fazer-lhe um túmulo na parte de trás do coro, a sala da portaria, do convento de Lisboa[18], em frente do de Fr. Luís de Granada, no qual está escrito um elucidativo epitáfio, que diz: Magnus Theologus Frater Joannes de Vasconcello, ex Praedicatorum familia, clarissimus sanguine, moribus nitidior, Regis, ac supremi Inquisitionis Senatus á Consiliis, Prioris Provincialis munere, Regii Concionatoris laurea, Pontificia recusata dignitate, virtibus cumulatus, ac meritis, in Crucifixi amplexu, magna Christianae pietatis opinione, pauperum dolore, omniumque desiderio, Ulyssipone maritur Kal Feb. ann. sal. 1652. aetatis suae 62.”[19]. Conserva-se na colecção do Marquês de Abrantes um retrato pintado deste ilustre personagem[fig. 1][20], o mesmo acontecendo numa gravura existente no início da sua biografia já citada[fig. 2][21].

Extracto de: Fr. António-José de ALMEIDA O.P. - «Imagines Sacrae» no Convento de São Domingos de Benfica. Lisboa: [Texto policopiado], 1999. 2 vols. Tese de Mestrado em História da Arte, orientada inicialmente pelo Prof. Doutor Artur Nobre de Gusmão e depois pelo Porf. Doutor Vítor Serrão, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. I vol., cap. I, 3. [http://dited.bn.pt/30355/1346/1768.pdf (Índice, Introdução e Bibliografia)]

----------
[1] Os dados biográficos são colhidos da sua biografia: Fr. Andrés FERRER de VALDECEBRO O.P., Historia de la Vida del V. P. M. F. Iuan de Vasconcelos, Madrid, por D. Maria Rey, 1668 (a seguir: A. FERRER, Historia dela Vida …); da crónica dos dominicanos em Portugal, Quarta Parte da Historia de S. Domingos, particular do Reyno, e Conquistas de Portugal, por Fr. Lucas de SANTA CATARINA, Lisboa, na of. de António Rodrigues Galhardo, 1767, livro I, caps. 15-23 (ed. utilizada: Fr. Luís de Sousa, História de S. Domingos, Porto Lello & Irmão, 1977, Vol. II, pp. 526-573); o artigo de Cruz CERQUEIRA no jornal A Voz de 30 de Novembro de 1933, p. 3: "Fr. João de Vasconcelos, uma figura ilustre e esquecida"; e Teresa Leonor M. VALE, O Convento de S. Domingos de Benfica. D. João de Castro e o Instituto Militar dos Pupilos do Exército, [Lisboa], I.M.P.E., 1996, pp. 33-41.
[2] O Pe. António da Conceição foi retatado numa gravura executada por Lucas Vorstermans II (*1624 - †1667) quando da sua estada em Portugal entre 1645 e1648 – José Alberto Gomes MACHADO, “Lucas Vorstermans em Portugal. Uma via de introdução da imagética barroca?”, in Pedro DIAS (coord.), IV Simpósio luso-espanhol de História da Arte: Portugal e Espanha entre a Europa e Além-Mar, Coimbra, Instituto de História da Arte – Universidade de Coimbra, 1998, pp. 145 e 150.
[3] A primeira casa da Reforma do século XIV dos Frades dominicanos em Portugal e toda a Península Ibérica, como atrás dissemos.
[4] "Confirmamus Capituli ordinationem alias factam et per nos iterum confirmatam, quod priores conuentuales completo triennio sui prioratus subsequenter et ilico perseuerent uicarijs eorum conuentuum in capite & in membris quousque praesentes uicarios instituimus ex nunc ubi fuerint priores, quousque domus et conuentus illac habeat priorem confirmatum et praesentem" - das Ordenações do R.mo Fr. Vicente Justiniano, Mestre Geral da Ordem dos Frades Pregadores, para a Província dominicana de Portugal, datadas de 12 de Outubro de 1566, in CARTÓRIO Dominicano Português - Século XVI, Fasc. 10: Capítulos Provinciais da Ordem de S. Domingos em Portugal, 1567-1591, Porto, Arquivo Histórico Dominicano Português, 1977, p. 53, nº 510.
"Declaramus priores, completo suo officio, etsi uicarij permaneant conuentui, non tamen electioni noui prioris esse uicarios, sed hoc esse supprioris munus" - Actas do Capítulo Provincial da Província O.P. de Portugal tido em Lisboa e datadas de 14 de Setembro do 1567, declaração esta reiterada no Capítulo seguinte de Santarém (Actas datadas de 10 de Novembro de 1571), in Ibid., p. 8, nº 21 e p. 12, nº58.
No Capítulo subsequente de Lisboa (Actas datadas de 2 de Maio de 1574), esta declaração teve a seguinte formulação:. "Declaramus, iuxta ordinationem Capituli Generalis, quod solum prior qui compleuit tiennium manet uicarius in capite, non tamen uicarius electionis noui prioris, quod manus pertinet ad suppriorem", in Ibid., p. 18, nº 128; porém, no Capítulo seguinte realizado no Porto (Actas datadas de 14 de Maio de 1576), a mesma declaração foi reformulada como segue: "Declaramus quod prior omnis cuius officium cessauit quacunque de causa, modo non sit propter defectus absolutus, etiam si non compleuerit tiennium, maneat uicarius in capite, non tamen electionis, quia munus hoc pertinet ad suppriorem. Quod si necesse est hoc ipsum de nouo ordinamus, declarantes, quod uicarius uotum habet in electione prioris", in Ibid., p. 23, nº 183; formulação esta reiterada nos Capítulos subsequentes de Benfica (Actas datadas de 19 de Abril de 1578) e da Batalha (Actas datadas de 20 de Setembro de 1579), in Ibid., p. 27, nº 235 e p. 31, nº 286.
[5] Como veremos a seguir, pp. 29-30*
[6] Chegou até nós um retrato a óleo, em cuja inscrição se refere este seu cargo. Vd. no fim deste sub-capítulo, p. 25* (nota 57) e fig. 3.
[7] A. FERRER, Historia dela Vida..., f. 41r.
[8] In Historia de S. Domingos particular do Reino e Conquistas de Portugal. (História de S. Domingos por Fr. Luís de Sousa, Porto: Lello & Irmão - Editores 1977, 2 vols.), a seguir: Hist. S. Dom.. As citações serão feitas, entre parêntesis curvos, da ed. de 1977.
[9] Fr. Luís de SOUSA O.P., Hist. S. Dom., II Parte, cap. III (vol. I, p.824).
[10] Fr. Lucas de SANTA CATARINA O.P., IV Parte da História de S. Domingos, livro I, cap. 15 (vol. II, p. 531).
[11] Ibid., cap. 20 (p. 552).
[12] Rapidamente se espalharam por Espanha exemplares das suas obras. É o caso da livraria do patriarca Ribera, do seu colégio-seminário do Corpus Christi de Valência, onde se encontra, entre as obras impressas do século XVI, as Instructiones Fabricae. - Francisco MARTÍN HERNANDEZ, “Influencia en la Península Ibérica”, in San Carlo e il suo tempo. Atti del Convegno Internazionale nel IV centenario della morte (Milano, 21-26 maggio 1984), Roma, Edizioni di Storia e Letteratura, 1986, vol. I, p. 481. Necessário seria pesquisar também nas bibliotecas portuguesas exemplares desta época. As livrarias dos conventos dominicanos de Lisboa desapareceram, como já atrás dissemos.
[13] Agostino COLLI, “Un Trattato di Architettura Cappuccina e le «Instructiones Fabricae» di San Carlo”, in Ibid., vol. I, pp. 663-688.
[14] Ibid., p. 682.
[15] Ibid., p. 680.
[16] Sobre Santo António dos Portugueses em Madrid, cf. Antonio BONET CORREA, Iglesias Madrileñas del Siglo XVII, Madrid, Instituto «Diego Velazquez», 1984, p. 29.
[17] Fr. Lucas de Santa Catarina compara Fr. João de Vasconcelos a Salomão e cita a propósito dele o versículo 8 do Salmo 25, na versão da Vulgata: "Domine dilexi decorem domus tuae: Senhor, eu amei a fermusura de vossa casa." - Fr. Lucas de SANTA CATARINA, Hist. S. Dom., Parte IV, livro I, cap. 25 (vol. II, p. 531). Sabemos que a ideologia salomónica esteve na base da construção do Mosteiro do Escorial por Filipe II de Espanha - Cf. C. OSTEN SACKEN, El Escorial, cap. 6: "El Escorial como Nuevo Templum Salomonis", pp. 119-136.
[18] Na quadra hoje nas traseiras da Igreja de S. Domingos ao Rossio, quem sai para o Largo de Martim Moniz - o chamado antecoro.
[19] "Vem a dizer em o nosso vulgar: O grande Theologo Frei João de Vasconcellos, da familia dos Prégadores, clarissimo em sangue, muito mais em virtude, do Conselho d'el Rei, e supremo Tribunal da Inquisição, Prior Provincial, e Pregador d'el Rei, recusada a dignidade Episcopal, cheio de virtudes, e merecimentos, abraçado com hum Crucifixo, (com grande opinião de piedade Christãa, magoa dos necessitados, e saudade de todos) morre em Lisboa. Em as Calendas de Fevereiro, anno da salvação 1652, de idade de 62." - Fr. Lucas de SANTA CATARINA O.P., Hist. S. Dom., Parte IV, L. I, cap. 23 (vol. II, p. 572) Cf. tb. o artigo de Vítor SERRÃO no qual se referem os monumentos fúnebres: “Marcos de Magalhães, Arquitecto e Entalhador do Ciclo da Restauração (1647-1664)”, in Boletim Cultural [da] Assembleia Distrital de Lisboa, nº 89, Tomo I, 1983, pp. 217-329.
[20] ACADEMIA Nacional de Belas Artes, cat. Personagens Portuguesas do século XVII. Exposição de Arte e Iconografia (preâmbulo de Reynaldo dos SANTOS), Lisboa, Palácio da Independência, 1942, nº 41, p. [20] (texto) e estampa. Esta fotografia foi reproduzida na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 34, p. 292.
[21] A. FERRER, Historia dela Vida..., f. [Xv.].
.
Traducción en castellano: Fray António-José de ALMEIDA O.P. - “El escultor Manuel Pereira y un milagro de Fray João de Vasconcelos, O.P., predicador de Felipe IV”. In rev. Reales Sitios. Madrid: Patrimonio Nacional. ISSN 0486-0993. Año XL (2003), nº 157 (3er. trimestre), pp. 20- 31.

Sem comentários: